segunda-feira, 14 de julho de 2014

O FOGO DO INFERNO

Dona Antônia já havia passado dos noventa anos e dava por cumprida a sua missão aqui na Terra. Filhos criados, netos e até bisnetos já encaminhados, a vida começou a passar devagarinho à frente de sua vista miúda. Foi vindo uma canseira, uma preguiça imensa em ter que esticar os dias cada vez mais longos. Decidiu que era hora de abrir vaga para os mais novos e passar desta para a melhor.

 Mas ao invés de encontrar paz e descanso na perspectiva do eterno repouso, o que brotou foi o medo terrível de uma ameaça que a acompanhava desde a longínqua infância: O FOGO DO INFERNO!
 Era como se todos os sermões do Monsenhor Prado, mais as ameaças de dona Íris, no catecismo, tivessem saído da neblina do tempo e viessem assombrar como fantasmas à pobre dona Antônia. O pior é que a velhice, se limita braços, pernas, olhos e ouvidos, fechando portas para a realidade do aqui e do agora, deixa solta e até alimenta mais a imaginação. A quem não pode mais correr, ver, ouvir e até falar, resta o lembrar e o imaginar...

E nas lembranças e na imaginação de dona Antônia vieram todos os pecados (ou o que ela classificava como tal) de sua longa vida. Ao lado de cenas e personagens do passado surgiam o remorso e o medo, avivados pelo fogo do inferno. Não havia escapatória, dona Antônia estava frita, e o que é pior, por toda a eternidade!

Quem primeiro percebeu o drama foi Maria, a empregada, que era quem tinha mais paciência de ouvir os queixumes de dona Antônia. A parentada, ao saber da história, primeiro achou graça. Só mesmo caduquice, onde já se viu, a dona Tininha no inferno? Vai converter o capeta! Mas logo viram que o caso era sério. Dona Antônia sofria e se agoniava com o medo que a devorava.

Tio Haroldo era médico, o único dos filhos que se formara, e foi chamado para resolver a questão. Do alto do seu diploma diagnosticou:
 “Bobagem mamãe, inferno é aqui mesmo, este seu medo é besteira...”
 “ Vade retro, Satanás, não venha me enrolar que ainda não cheguei em sua casa!”, gritou dona Antônia, escondendo-se sob o cobertor depois de expulsar o Tio Haroldo como se fosse o próprio demo.

Carolina, uma das netas, estudante de Comunicação, tentou explicar que o inferno era uma invenção das padres para manter os fiéis sob controle. Levou uma bengalada na testa.

Em dona Antônia o medo estava agora misturado com a raiva, o que já era um outro pecado a carimbar seu passaporte para as profundas. A casa virou um inferno. Ninguém mais vivia em paz e dona Antônia não morria em paz...

Esgotadas todas as tentativas domésticas, resolveram apelar para a Santa Madre Igreja. Chamaram o Padre Candinho, santo homem, para abrir à dona Antônia as portas do Paraíso. Ele veio munido de sermão, benção, água benta, confissão, unção, Eucaristia e todo o arsenal capaz de garantir uma vaga à direita de Deus Pai.

Dona Antônia agarrou-se àquela tábua de salvação. Passou a vida a limpo. Lavou e enxaguou a alma no ouvido de Pe. Candinho. Confissão de mais de duas horas, pois além da dificuldade de se fazer entender, depois de aposentada a  dentadura, eram noventa anos de pecados a apurar...

No finalzinho, quando Pe. Candinho já engatilhava a absolvição plenária que apagaria o fogo do inferno, dona Antônia arregalou os olhos apavorada e disse:

 “ Tô perdida! Tem um pecado que Deus não perdoa. Li na Bíblia. Pecado contra o Espírito Santo não tem perdão. Não tenho salvação...”
 E dona Antônia foi buscar lá na sua meninice de 6 anos a lembrança de uma travessura que custara a vida de uma pobre pombinha. Tininha, levada, resolveu brincar com a ave como se fosse uma peteca... a coitada virou paçoca. Dona Eulália ralhou e prescreveu castigo. “Onde já se viu tamanha maldade com o bichinho? Quando morrer, Deus castiga!”

 QUANDO MORRER, DEUS CASTIGA...

A frase ficou gravada nos labirintos da memória como uma maldição e voltava agora, condenação última, definitiva e sem perdão. Dona Antônia matara um parente do Espirito Santo e estava inapelavelmente FRITA!

A paciência do Pe. Candinho já estava derramando pelas beiradas. Num último esforço, ele reuniu todos os argumentos teológicos acumulados em anos de seminário e paróquias, nas milhares de aulas de religião e sermões do seu longo sacerdócio, para explicar à dona Antônia que Deus não é um carrasco vingativo, nem trabalha na polícia. Que Ele é um Pai amoroso que perdoa e acolhe a todos os seus filhos, mesmo os mais pecadores, que afinal somos todos nós. E além do mais, acrescentou o Pe. Candinho, vermelho como um pimentão, O ESPIRITO SANTO NÃO É UMA POMBA!!!

 Tudo inútil. Dona Antônia  entregava-se aterrorizada à maldição que a acompanhara por toda vida: O FOGO DO INFERNO A ESPERAVA!
 Pe. Candinho já ia desistindo quando uma idéia iluminou-lhe o rosto.

Correu na Bíblia e localizou o trecho que procurava.
 “ Dona Antônia, a senhora está salva!”
 “Salva o que, Pe. Candinho, eu tô é fudida” disse dona Antônia, já apelando para a ignorância e, em nome da caduquice, falando um palavrão, coisa que nunca fizera em toda a sua vida, ainda mais na frente de um padre, o que, agora, condenada como estava, não ia alterar muito a temperatura das fornalhas infernais que a aguardavam.

 “Não, dona Antônia, tá aqui na Bíblia, Mateus capítulo 24, versículo 51, aqui diz que no inferno tem choro e ranger de dentes... a senhora não tem dentes, dona Antônia, não vai poder ficar no inferno!!!”
 Dona Antônia aprumou-se na cama e com os olhinhos miúdos tentava ler o trecho que Pe. Candinho apontava com o dedo. Com muito custo soletrou o versículo salvador.

 Dona Antônia não teve dúvida. Reuniu a parentada, despediu-se de todos, fez as recomendações de praxe e acrescentou uma, especialíssima:

 NÃO ME ENTERREM DE DENTADURA!!!
 Aí, deitou-se de novo, virou pro canto, deu um suspiro profundo, sorriu, morreu e foi pro céu...

MACHADO, Eduardo. Sobre todas as coisas. 2ª ed. Belo Horizonte: Lastro Editora Ltda, 2008. p.61-64

sexta-feira, 4 de julho de 2014

Assim era o nosso Silvério...




No dia 21 de junho passado, partiu para o Reino definitivo o nosso irmão Silvério. Alcançou a morada celeste servindo aqui em baixo à sua igreja e aos que tiveram o privilégio da sua presença. O movimento de cursilhos contribuiu, decisivamente, para que ele se tornasse um autêntico apóstolo dos nossos tempos.

Como o nosso patrono São Paulo, também combateu o bom combate, completou a corrida e guardou a fé.


Foi igreja no coração do mundo e mundo no coração da igreja. Onde Deus o colocou, ele se floriu,  produziu frutos em abundância, cem por um.

Na família, no seu ambiente profissional tornou-se sinal, sacramento, referência de Deus para os que o rodeavam. Extrovertido, procurando viver a ventura da graça, cada dia da sua vida, animou, soergueu, levantou muitos através da alegria contagiante que o seu rosto e gestos revelavam a todos. Na sua comunidade paroquial, como ministro extraordinário da eucaristia, do batismo, na preparação dos pais e padrinhos para o sacramento do batismo, nos encontros de iniciação cristã colocou com amor e disponibilidade seus talentos à construção do Reino. Ele se situava entre os primeiros da caminhada do movimento. Participou do cursilho em julho de 1971, na diocese de Teófilo Otoni. O compromisso assumido de que Cristo poderia contar com ele, perdurou até o final. Se buscarmos, se recorrermos aos quadrantes dos cursilhos masculinos realizados aqui verificaremos que ele colaborou em muitos. Poucos são os que o alcançam. Quando era convocado, se preparava convenientemente. Na manhã da quinta-feira, já estava na casa. Quando os demais se apresentavam no horário determinado, encontravam a sala de mensagens e outras dependências preparadas.

Durante muitos anos foi, sozinho, uma equipe de apoio. Um dos instrumentos mais eficazes, recomendados pelo cursilho para perseverarmos na missão assumida é a reunião de grupo semanal. Ele a observava fielmente. Quarenta e três anos de freqüência, de presença.

Sete anos no grupo São João Bosco, trinta e seis no grupo São João Vianey. Sentia-se feliz com o momento. Animava, incentivava, ajudava aos companheiros a ir em frente, avante. Amou o seu grupo, os seus irmãos de caminhada.

Não esqueceremos o Silvério e o recordaremos sempre, com saudades, trabalhando no cursilho.

O último a deitar-se e o primeiro a levantar-se, para verificar, conferir se tudo estava organizado para a jornada do dia. Era incansável.

Os valores do Reino,  abraçados em Teófilo Otoni, em julho de 1971, ele os tornou pérolas preciosas e as ofertou generosamente à igreja e ao Movimento dos Cursilhos da Diocese de Divinópolis.

Assim era o nosso Silvério.

Amém!

Rafael Fernandes
Divinópolis